Em entrevista exclusiva ao Jornal Band News de terça-feira (6), o diretor Vinícius Pessoa e a atriz e cantora Neusa Borges apresentaram seu novo filme, “Ambrosia: O Manjar dos Deuses”. Este longa-metragem representa um marco significativo na carreira de Vinícius Pessoa, que está estreando como roteirista e diretor de ficção. Natural de Brumado e formado em Cinema e Audiovisual pela Universidade do Sudoeste da Bahia (Uesb), em Vitória da Conquista, Vinícius traz uma vasta experiência no campo, com produções notáveis como Passarinho, Retrato de um Adeus e Isso Não é um Kit Gay. Além disso, ele colaborou com diretores renomados como Rayane Teles e Edmundo Lacerda em projetos como O Ovo e O Sonho de Zezinho.
A atriz Neusa Borges, cuja carreira impressionante se estende por mais de cinco décadas, foi escolhida para estrelar o filme. Nascida em Florianópolis, Santa Catarina, Neusa iniciou sua trajetória artística como cantora em São Paulo, na década de 1950. Destacou-se em telenovelas com “Beto Rockfeller” (1968) e fez sua estreia no teatro com o musical “HAIR” no ano seguinte. Sua primeira aparição na TV Globo foi em 1976, como a memorável ‘Escrava Isaura’.
Ao longo de 67 anos de carreira, Neusa Borges interpretou mais de 90 personagens em novelas, minisséries, seriados, especiais, filmes e peças teatrais, consolidando-se como uma figura de destaque no cenário nacional. Ganhou notoriedade principalmente em telenovelas, onde atuou em papéis marcantes como em Sinhazinha Flô (1977), em Dancin’ Days (1978), Carmem em Carmem (1987), Marcia em De Corpo e Alma (1992) – papel que lhe rendeu um prêmio da APCA –, em Quatro por Quatro (1994), em A Indomada (1997), em O Clone (2001), Maria do Sol em América (2005), Dona Nenê em Araguaia (2011), Dra. Marinha em A Vida da Gente (2011) e em Salve Jorge (2012).
Nas séries, especialmente de comédia, Neusa também se destacou, com papéis notáveis em Casa de Irene (1983), Rosa dos Rumos (1990), Sob Pressão (2019), Auto Posto (2020), Encantado’s (2022) e Histórias (Im)Possíveis (2023).
No cinema, começou sua trajetória com o romance A Moreninha (1970), mas ganhou maior reconhecimento com o drama erótico A Carne (1955). Borges é amplamente reconhecida por sua versatilidade, com destaque em filmes como Bacalhau (1975), Um Crime Nobre (2001), Uma Vida em Segredo (2001), O Herói (2004), Polaróides Urbanas (2008) e Mussum, o Filmis (2023), pelo qual recebeu o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado.
No teatro, destacou-se em produções como A Capital Federal (1972), A Parede (1973), Mariquinha e José de Souza Leão (1974), Inferno e Sertão (1976), São Jorge Contra os Invasores da Lua (1976), A Ópera do Malandro (1978) e Tempo Bom (1980).
Ao chegar no estúdio da Band FM, Neusa Borges se emocionou ao relembrar o início de sua carreira. “Estou toda arrepiada desde que entrei aqui. A Band faz parte da minha história. Trabalhei muitos anos aqui em novelas, e o sucesso foi tão grande que nunca me esqueço. A personagem Narcisa, de A Deusa Vencida, morria na metade da trama, mas pilhas de cartas chegaram à Band pedindo o retorno dela, e assim foi feito. Foi uma das primeiras vezes que ganhei um grande prêmio de novela. Também trabalhei em programas musicais da Band, e minhas filhas seguiram o mesmo caminho, atuando em filmes nacionais e internacionais. Então, a Band faz parte da história da minha vida. Estou em casa, é uma coisa boa.”
Refletindo sobre sua trajetória, Neusa Borges abordou as dificuldades persistentes enfrentadas como mulher negra e destacou que, apesar dos avanços do movimento antirracista, muitos problemas ainda persistem.
“Olha, o obstáculo, se me perdoem, continua pra mim, continua até hoje. Apesar de se falar que o negro agora tem visibilidade, o próprio negro muitas vezes não aceita mais ser chamado de negro, achando isso um retrocesso. Mas, para mim, nada mudou. As dificuldades são as mesmas. No passado, dizia-se que não havia atores negros no Brasil, mas sempre houve grandes artistas negros. A questão era a falta de oportunidades. Hoje, o que vejo é uma moda passageira. Fui da época do ‘black is beautiful’, um slogan que rapidamente foi esquecido. Agora, parece que virou moda ser negro, mas isso não resolve a questão estrutural. Muitas vezes, o que se vê são pessoas que tentam imitar o que é considerado ‘aceitável’, mas sem realmente entender o problema.
Mesmo em grandes novelas, como a que participei, muitas vezes me vi relegada a papéis secundários, enquanto outras atrizes brancas ganhavam mais e tinham papéis principais. E a realidade é que, se um negro ganhar mais do que um branco, é uma exceção, não a regra. O sistema muitas vezes parece não mudar. O movimento negro, para mim, às vezes parece mais uma mercadoria do que uma verdadeira força de transformação. Muitos negros ainda enfrentam a mesma desigualdade e, apesar das aparências, a realidade não mudou tanto quanto se gostaria de acreditar.”
Sobre sua participação no filme de Vinícius Pessoa, Neusa Borges falou com entusiasmo sobre como o cinema está entrelaçado em sua trajetória e mencionou seu recente protagonismo em um filme italiano.
“Eu posso dar assim a minha participação, porque eu, ultimamente, sou muito no cinema. Que, aliás, foi uma coisa que vem depois da dança, e até antes de ser cantora, o cinema já estava na minha vez, já estava fazendo algumas coisas. E, inclusive, trabalhos em filme internacional. Que nunca na vida foi me dado valor de ter começado em filme internacional. Como agora mesmo. Faz, dizem, duas semanas que eu acabei de ser protagonista de um filme italiano. Não vi uma nota em jornal, uma nota em revista, não vi nada. Agora, se fosse fulano, beltrano, já estava em capa de revista, falando assim, mas é Neusa, uma atriz negra. O filme se chama Conselho de Vó, é um filme italiano que ainda não está disponível no Brasil. Terminamos de filmar faz duas semanas. E aí, quer dizer, não vi nada, ninguém fala nada. Por quê? Porque é uma atriz negra.”
Neusa continuou a refletir sobre as dificuldades enfrentadas pelos atores negros: “O negro não está tanto assim nessa evolução trabalhista, sinal. A moda está igual a influência. Ser humano já nasce influência. Então, assim está o negro. E por mais que você lute, lute, lute, de repente tem horas que você vê o negro lutando contra o próprio negro. Eu posso falar isso com 83 anos de idade porque eu já passei pela minha vida. Em 67 anos de carreira, 68 vai fazer o mês que vem? Ah, ah, ah, eu posso falar. Você enxerga que é mais a pessoa negra se posicionando do que a própria sociedade que deveria abraçar.”
Ela também comentou sobre sua experiência pessoal e a luta contínua: “Eu sempre me posicionei muito sozinha, porque eu tenho aquela coisa que o povo fala, lá vem a Neusa reclamando de alguma coisa. Lá vem a Neusa. Olha, eu vou ver, porque a Neusa me cuida. A Neusa quando tem que falar, a gente tem que acompanhar, porque a negra fala. A negra não tem um medo. Mas é preciso falar, sim. É preciso falar, sim. A minha vida inteira, desde que eu comecei a trabalhar. Já que eu tenho que lutar sozinha, então eu vou lutar sozinha. O negro não ajuda a negra.”
Sobre sua participação e sua personagem no filme, Neusa comentou com entusiasmo que está satisfeita em integrar mais este trabalho ao seu portfólio: “Olha, eu não vou falar, porque eu estou aqui do lado do diretor. Não sou eu que posso falar. O que eu posso falar é que eu estou muito feliz de eu ser um trabalho a mais. Eu ainda tenho filhas para criar, netos para sustentar, família, amigos, porque eu não sei… Gente, eu nunca vi na minha vida, como eu tenho filhos. É tanto filho, é tanto sobrinho, que eu já perdi a conta. Ah, minha mãe, minha mainha, a mainha para cá, a mainha para lá, e a mainha leva para o restaurante, a mainha leva para passear, e os netos, a mesma coisa, minha vovó querida. E assim, a gente vai ficando velho e a gente vai tendo essas experiências, inclusive, que você não tinha quando era uma realidade. E agora, meu Deus do céu, eu não posso parar de trabalhar. Eu sou aposentada, claro, eu recebo também uma pensãozinha do Exército, mas eu tenho que continuar trabalhando, sim, porque eu já passei fome na minha vida, eu não quero passar mais. E o salário do negro não é tão grande assim, então a gente tem que matar vários leões para poder pegar um franguinho, para poder comer um franguinho.”
Quando conversamos com Vinícius sobre o filme, ele compartilhou detalhes sobre como surgiu o roteiro e a importância da representatividade LGBTQIAPN+, além dos desafios de desenvolver um drama dentro do contexto de uma família disfuncional:
“O roteiro nasceu em 2020, em meio à pandemia. Ele é um filme muito pessoal. Não é autobiográfico, mas é muito pessoal. Tem muita coisa minha no filme. Acho que essa talvez seja uma das maiores dificuldades, porque quando a gente mergulha nas nossas dores e questões, é muito difícil lidar com isso no processo de escrita. Claro, vão surgindo outras coisas também. E, num contexto de pandemia, que já era muito complicado para criar, teve momentos realmente difíceis. O processo é longo, o roteiro vai evoluindo. O que temos hoje não é exatamente o que era no começo, mas é necessário esse primeiro passo. Hoje, eu digo que as dificuldades são muito relacionadas ao fazer cinema no Brasil, que não é fácil. É muito difícil.”
Ao discutir a produção do longa-metragem, Vinícius Pessoa compartilha sua visão sobre o processo criativo e a escolha das locações para o filme. Ele revela como a conexão pessoal com as cidades envolvidas influenciou a narrativa e a logística da produção:
“Eu sou natural de Brumado e moro em Vitória da Conquista há mais de 11 anos. Me formei em cinema aqui. Por ser muito pessoal, minha família é toda de Brumado, e o filme se passa em Brumado. Por questões de produção, vamos gravar as externas lá e as internas aqui em Vitória da Conquista, por questões de logística mesmo. Mas a história do filme em si se passa na cidade de Brumado. Há uma ligação muito pessoal com minha infância, com minha família e com as vivências relacionadas à cidade.”
Sobre a representatividade no filme, Vinícius Pessoa destaca a importância do personagem principal ser um homem gay de corpo gordo em busca de afeto, e como isso influencia a narrativa. Ele explica a relevância desse aspecto na trama e o papel simbólico da comida:
“Essa busca por afeto é profundamente influenciada pela ancestralidade e pela figura dos avós, que, no contexto da história, representam um tipo de afeto que vai se perdendo com o tempo. O personagem busca reencontrar esse afeto que não encontra em outras relações, seja nas sexuais ou nas amorosas. Ele encontra esse acolhimento justamente nas figuras dos avós e na sua conexão com a ancestralidade. A comida tem um papel fundamental no filme; eu não posso dar muitos detalhes para evitar spoilers, mas ela permeia toda a trama e serve como uma metáfora importante. A ambrosia, que é preparada pela avó para o neto, simboliza essa conexão com o passado e a busca por felicidade eterna. Segundo a mitologia grega, quem comer a ambrosia, o manjar dos deuses, alcançará felicidade eterna. Assim, a ambrosia tem um significado profundo no filme.”
Vinícius ressalta a importância da Lei Paulo Gustavo para o cenário audiovisual de Vitória da Conquista e explica o tempo necessário até que o filme esteja pronto para o público:
“A Lei Paulo Gustavo é crucial para nós, especialmente após o período pandêmico e a desarticulação cultural que enfrentamos. Ela está utilizando recursos que estavam parados há anos, destinados ao cinema. Esses recursos não são novos; são impostos da Ancine, que todo veículo de comunicação deve pagar. O investimento que estamos recebendo não surgiu do nada, mas é uma reativação de fundos destinados ao audiovisual.
É importante destacar também a descentralização proporcionada pela Lei Paulo Gustavo. No passado, os recursos eram concentrados no Rio e em São Paulo, e mesmo quando chegavam à Bahia, eram destinados majoritariamente a Salvador. Agora, com a Lei Paulo Gustavo, os investimentos estão sendo distribuídos mais amplamente. Isso é fundamental para criar um polo cinematográfico em nossa região. Temos um curso de cinema em Vitória da Conquista, e uma memória cultural significativa com nomes como Glauber Rocha e Geraldo Sarno. A ideia é que essas produções se tornem recorrentes e fortaleçam o cenário local.
Sobre o tempo até o filme estar pronto, é difícil dar uma data exata. O processo de pós-produção é longo, mesmo sem grandes efeitos especiais. No entanto, esperamos que o filme esteja pronto para apreciação até o final de 2025. Continuamos trabalhando para garantir que o projeto ganhe vida e chegue ao público o quanto antes.”
Para encerrar a entrevista, Vinícius compartilha seu desejo sobre o legado do filme para as futuras gerações: “A gente sempre espera que o filme se torne um clássico, mas isso está fora do nosso controle. O que realmente desejo é que ele proporcione um acalento no coração de quem assistir. Já me sinto feliz com isso.”
Além de diretor, Vinícius atuou como produtor, ator e diretor de fotografia, entre outras funções na cena cultural do interior baiano. Hoje, ele é diretor criativo da Retratos Filmes e está recebendo apoio significativo para Ambrosia: O Manjar dos Deuses, um projeto contemplado pelos Editais da Paulo Gustavo, com o suporte financeiro do Governo do Estado da Bahia e da Secretaria de Cultura, através da Lei Paulo Gustavo, criada para apoiar emergencialmente o setor cultural, conforme a Lei Complementar nº 195, de 8 de julho de 2022.
Por Ana Carolina Bastos